O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL
OS EXÓRDIOS DO ANARQUISMO PORTUGUÊS
1. O contexto do século XIX
Pelo menos até aos anos '70 do século passado foi essencialmente agrícola a economia de Portugal e muito pobre a grande maioria da população - analfabeto, mantida debaixo de uma capa de superstição induzida por uma religiosidade feita de medo e credulidade em milagres imaginários: uma sociedade de classes que - durante todo o século XIX tinha no seu vértice a monarquia enfraquecida da dinastia Bragança, obtusa e parasita como a aristocracia local.
Portugal (e igualmente Espanha) não recuperou nunca da perda do seu grande império colonial e comercial no ultramar, que conseguiu criar através as grandes descobertas geográficas na África, Ásia e América e as navegações oceânicas dos séculos XV e XVI; império que os seus competidores e rivais de Inglaterra e Holanda corroeram progressivamente.
Nos dois Estados da península ibérica as classes dominantes fizeram lucros enormes pelas pilhagens no primeiro período das conquistas e depois pelos comércios e pela exploração dos recursos naturais e da mão de obra nativa e escrava nos territórios do ultramar; igualmente também pelo tráfico maciço de carne humana capturada em África que se prolongou por séculos.
Contudo, os enormes capitais realizados (por poucas pessoas) foram desperdiçados, quer na pompa e na vida luxuosa, quer na construção de obras monumentais, às vezes pouco utilizadas (como o palácio real e convento de Mafra financiado pelos metais preciosos extraídos no Brasil) ou inacabadas (como a basílica da Estrela em Lisboa).
Estes capitais, por outras palavras, não foram transformados em instrumentos para o desenvolvimento económico do país, e por conseguinte não houve nenhum processo de passagem da fase primitiva de acumulação a uma fase - embora inicial - de produção industrial.
Todos os gastos improdutivos da corte, da nobreza e dos ricos deram vantagem só aos produtores e comerciantes estrangeiros que vendiam as custosas mercadorias requeridas pelas oligarquias portuguesas: e foram estes produtores e comerciantes os que realmente extraíram daqui uma vantagem estrutural, usando aqueles lucros avultados para financiar o desenvolvimento industrial dos seus próprios países.
A consequência foi que, depois do fim do seu período de grande poder marítimo e comercial, Portugal ficou dominado pelo capital estrangeiro (ou seja, o britânico). Só no fim do século XVIII e no começo do século XIX houve um mínimo de actividade industrial, com todas as características do capitalismo quando não tem o contrapeso de um movimento operário forte: salários de fome e horários de trabalho penosos.
Por causa da situação geral do país, o processo de formação dum movimento operário desenvolveu-se muito devagar. Não se esqueça que a massa da população estava submissa a um cristianismo terrorista espalhado pelo clero católico e que até a 1821 operou em Portugal aquela ferramenta poderosa de controle social e das consciências - assimilável só à ditadura de Estaline - que respondeu ao nome de Santa Inquisição.
De qualquer maneira - e como em todas as sociedades rurais qualificadas de "arcaicas" - as populações rurais constituíram ao longo do tempo e sempre que possível, formas de ajuda mútua, como as "Irmandades", mais ou menos organizadas ou, às vezes, informais. O que, em concreto, criou na população certo um nível de sensibilidade social: pelo menos, no sentido de que, numa série de circunstâncias da vida (construção de uma casinha modesta, morte de um parente, trabalhos para a colheita, reparações após fogos ou tempestades, etc.) nas aldeias, a maioria dos habitantes do país podia contar com a ajuda dos vizinhos.
Uma sacudidela consistente à velha sociedade portuguesa - reaccionária, sonolenta, fechada em si mesma - veio da revolução francesa (embora as classes dominantes não tivessem percebido completamente as suas implicações) e se materializou por um contacto conflituoso e fecundo: a invasão napoleónica (1807-1811). Nã ostante o isolamento cultural e o atraso sócio-económico, as doutrinas liberais relativas aos direitos do Homem e à livre soberania dos povos, cruzaram as fronteiras, aportando a Portugal através de "estrangeiros" vários e de uma imprensa cada vez mais fugidia à censura oficial. E pogressivamente, o país entrou na órbita das grandes disputas europeias.
Depois da derrota francesa, os contrastes entre os reaccionários e os reformadores causaram logo uma guerra civil sangrenta entre absolutistas e liberais (1832-1834), ganha por estes últimos.
Por causa dos acontecimentos da guerra civil muitas pessoas de cultura acompanharam os movimentos das ideias na França e tiveram melhor conhecimento das ideias revolucionárias da época, com referência particular às ideias de Proudhon. Derivou deste conjunto de circunstâncias a formação, quer de uma camada de intelectuais progressistas e simpatizantes do socialismo, quer de militantes operários autodidactas que constituíram o núcleo fundamental da esquerda revolucionária em Portugal.
2. Os primeiros fermentos anarquistas
Na época proto-capitalista a primeira associação moderna de apoio mútuo entre os trabalhadores, foi fundada em 1839 pelo impulso de Alexandre Fernandes de Fonseca em Lisboa: a Associação Operária Mutualística Portuguesa. Em 1850 Sousa Brandão e Lopes de Mendonça começaram a publicar o periódico O ECO DO OPERÁRIO (3) veículo de difusão das ideias proudhonianas e fonte de impulso para o associativismo operário (tenha-se em conta a taxa de analfabetismo então existente no país).
Os dois grandes eventos revolucionários do século XIX na Europa - o nascimento da Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) em 1866, e a Comuna de Paris em 1871 - tiveram uma certa repercussão em Portugal (4) e também alguns entre os maiores intelectuais portugueses da época, influenciados por Proudhon (como Antero de Quental, de Eça Queiroz, Oliveira Martins e Teófilo Braga), manifestaram a sua preferência para com os protagonistas destes acontecimentos e com as suas ideias.
Tanto que, apesar do atraso cultural do país e da acção persistente do clero católico para aquietar as massas, o governo da época começou a ter preocupações sérias pelo aparecimento de ideias radicalmente subversivas. Quando a 16 de Março de 1871 a imprensa deu o anúncio dum programa de Conferências Democráticas de Antero de Quental, a começar a 12 do mês, as autoridades apressaram-se a proibi-las, originando protestos de muitos intelectuais (entre os quais Alexandre Herculano).
Com referência à difusão das teorias libertárias foram importantes: a publicação, em 1848, de O que é o Comunismo de Henrique Nogueira; a acção de Joaquim Maria Rodrigues de Brito, professor de filosofia do direito na universidade de Coimbra que adoptou como livro de texto A Mutualidade de serviços de Proudhon; a missão em Lisboa, em 1871, dos anarquistas espanhóis Francisco Mora, Tomás Gonzales Morago e Anselmo Lorenzo, para criar uma secção portuguesa da A.I.T. Para tal fim eles estabeleceram contacto com Antero de Quental e Jaime Batalha Reis: ao núcleo português aderiram, entre os outros, França de Nobre, Azedo Gneco, José Tedeschi e Sousa Monteiro.
Um ano depois da viagem destes três anarquistas, graças ao compromisso ardente de trabalhadores sinceros e honrados de categorias diferentes, Lisboa teve quase dez mil aderentes nas secções de resistência e Porto quase oito mil (5).
Em Janeiro de 1872 José Fontana foi o promotor duma Associação Fraternidade Operária que se fez representar pelo genro de Marx, Paul Lafargue, no congresso da Associação Internacional dos trabalhadores realizado em Haia. Esta reunião, em Setembro, foi teatro da ruptura entre os marxistas e os bakuninistas por causa da questão do autoritarismo e da sua aplicação organizacional: o partido operário pela conquista do poder estatal.
Nesta altura a influência do pensamento de Proudhon no seio da esquerda portuguesa era notável (junto com a de Owen e de Fourier) - depois sucedendo uma predominância assumida pela influência do pensamento de Bakunin (1814-1876) - ultrapassando os limites dos círculos intelectuais progressistas e introduzindo-se nos ambientes operários à beira duma expansão (em Lisboa e no Porto estava concentrada a recém-nascida indústria portuguesa, e assim será até ao final do regime salazarista).
O proletariado industrial que em 1852 contava poucos milhares de unidades passará a 455.000 unidades e mais em 1900 - todavia não mudando por isto a estrutura predominantemente agrícola da economia portuguesa, com pelo menos 3.500.000 pessoas ocupadas neste sector. Em 1872 as associações de trabalhadores contavam com mais de 10.000 sócios.
Um cunho proudhoniano permaneceu no anarquismo português e conferiu-lhe um certo carácter de positivismo libertário e isto explica a facilidade com que alguns componentes do anarquismo entraram em relação com o republicanismo simpatizante do socialismo de alguns sectores do movimento republicano.
O encontro entre pensamento socialista (num sentido amplo) e associativismo operário produziu a formação quer dum Partido Operário Português Socialista (POPS), em 1875 - mais reformista que revolucionário - quer dum movimento anarquista já muito vivo em 1887, que depressa demonstrou ser o mais forte e vital. Associações de classe e actividades culturais de ilustres expoentes da intelectualidade portuguesa foram os instrumentos apropriados para uma difusão do pensamento libertário que se arraigou mais extensamente do que o pensamento de Marx no país.
A vigorosa difusão das ideias anarquistas teve êxitos positivos também em relação ao desenvolvimento das associações de trabalhadores e dos instrumentos de divulgação do pensamento libertário e da luta de classes: entre 1886 e 1900 constituíram-se 12 grupos anarquistas em Lisboa (cidade com cerca de 300.000 habitantes), 4 no Porto (150.000 habitantes), 2 em Coimbra (17.000 habitantes) e 2 noutras localidades. Naquela altura editaram-se 8 jornais em Lisboa, 6 no Porto e 4 em Coimbra; sem falar da miríade de folhetos. E tão eficaz foi a propaganda anarquista que no Partido Socialista houve um abalo relevante na quantidade de aderentes. Não se pode esquecer o contributo importante para a formação do anarquismo português dado por Elisée Reclus, que visitou Lisboa e o Porto em 1886 (6).
Em Abril de 1887 constitui-se o Grupo Comunista-Anarquista de Lisboa, cuja Declaração de Princípios tinha já um conteúdo programático muito maduro e claro. Pouco depois constituiu-se no Porto um grupo análogo, e em Setembro saiu o primeiro número do jornal Revolução Social. Os elementos de relevo maior que actuaram no Norte foram Hermenegildo António Martins e J.M. Gonçalves Viana; e no sul João António Cardoso, Tiago Ferreira e José Bacelar.
Naquela altura o mundo ocidental não estava socialmente muito tranquilo, desendolvendo Estados e capitalistas una repressão selvagem contra o movimento operário. A Comuna de Paris, o suplício dos anarquistas em Chicago, são os acontecimentos mais conhecidos duma difusa situação de guerra social, dum clima que na França conduziu muitos anarquistas à escolha da acção directa ilegal, ou seja atentados à maneira de Ravachol e Emile Henri.
Nesta situação, Portugal não ficou isento e no meio operário geraram-se episódios de "propaganda ilegal pelos factos": por exemplo, o escritor e parlamentar Pinheiro Chagas foi espancado por causa dos insultos que ele tinha dirigido contra Louise Michel, a notável heroína da Comuna; em 1889 foi morto o industrial Cipriano de Oliveira e Silva; em 1890 uma bomba rebentou na sede do Consulado de Espanha, e outra bomba na casa do Conde de Folgosa em 1892; o Rei foi alvo de dois atentados respectivamente em 1893 e 1896; não falando das acções armadas do grupo clandestino chamado Carbonária Portuguesa, no qual estavam presentes muitos anarquistas (7).
O Estado, como é natural, reagiu emanando leis especiais (como a famigerada lei do 13 de Fevereiro de 1896) e recorrendo a uma enérgica repressão: muitos revolucionários e anarquistas foram deportados para Timor, Moçambique e Guiné. Apesar da repressão, as ideias anarquistas continuavam a difundir-se (8), e também as acções directas: a 1° de Fevereiro de 1908 membros da Carbonária - entre os quais o anarquista Alfredo Costa - na Praça do Comércio de Lisboa mataram o rei Dom Carlos e o Infante Dom Luís Filipe.
A 4 de Outubro de 1910 começou a revolução que derrubou a monarquia e o dia seguinte foi proclamada a República.
Nesta época, as lutas contra a monarquia, a repressão policial, o clericalismo, o domínio das instituições conservadoras constituíram uma espécie de "terreno comum" ponto de encontro para as acções concretas dos militantes anarquistas, socialistas e republicanos; as persistentes e respectivas diversidades ideológicas repercutiam-se nas diferentes escolhas operativas, como o abstencionismo eleitoral praticado pelos anarquistas.
(3) Por impulso de Lopes de Mendonça e Sousa Brandão.
(4) Sobre assunto é fundamental E. RODRIGUES, O despertar operário em Portugal
(1834-1911), Lisboa 1980.
(5) A. LORENZO, Il proletariato militante, Catania 1978, p. 122.
(6) No período sucessivo foi publicada uma miríade de colecções de folhetos e brochuras com conteúdo anarquista:
Biblioteca do Revoltado, Biblioteca do Grupo Anarquista Revolução Social, O Mundo Novo, Biblioteca dos Trabalhadores, Biblioteca Anarquista, Biblioteca dos Trabalhadores Anarquistas do
Porto, etc. Em 1904 constituiu-se no Porto o Grupo de Propaganda Libertária que deu impulso à criação de centro sociais, actividades sindicais, e organizou manifestações de protesto pela condenação à morte de Francisco Ferre y Guardiã em Espanha.
(7) A organização Carbonária Portuguesa nasceu provavelmente entre 1896 e 1897, coexistindo com outras duas Carbonárias, a de Coimbra e a chamada "dos anarquistas": com essa última os confins não foram nunca muito nítidos. Á origem da Carbonária Portuguesa deu impulso Artur Duarte Luz de Almeida (1867-1939), e à esta aderiram pessoas de cada classe social: empregados, operários,
estudantes, soldados de nível baixo e médio (mas um dos maiores chefes da revolução republicana de 1910, o almirante Cândido dos Reis, era carbonário).
(8) A história do anarquismo português é caracterizada por um proliferar contínuo de jornais e periódicos libertários, que desenvolveram uma acção notável como instrumentos de propaganda e luta. Alguns deles tiveram uma vida muito breve, outros mais longa, e alguns continuaram amiúde as publicações na clandestinidade. Lembramos os mais importantes:
A Revolta (1892); A Propaganda (1894); O Agitador, O Lutador, Grito de Revolta (1895);
A Ideia (1898); A Aurora (1900); O Proletário (1901); A Greve (1905);
A Sementeira, O Despertar (1908); O Libertário, Paz e Liberdade, A Vida, A Manhã
(1909), A Comuna (1920); O Argonauta (1929), etc.