O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

DITADURA E RESISTÊNCIA

Quando a 28 de Maio de 1926 um golpe militar chefiado pelo general Manuel de Oliveira Gomes da Costa derrubou a República liberal/democrática, não houve ninguém para a defender. 

Santos Arranha, director de A Batalha, participou como representante da CGT numa reunião de militares e civis no quartel do Carmo, da GNR de Lisboa, para tentar a organização dum bloco de forças que contrariassem as tropas de Gomes da Costa em marcha de Braga, rumo a Lisboa. Mas a tentativa faleceu pela insipiência dos políticos burgueses.

Não faltaram tentativas sucessivas de resistência. No Porto teve lugar uma reunião organizativa com a participação de delegados da CGT (Clemente Vieira dos Santos), da UAP (Abílio Ribeiro), da Federação das Juventudes Socialistas, da Câmara Sindical do Porto, do Comité de Propaganda Anarquista do Norte (Fernando Barros), dos jornais A Batalha, A Comuna, Grito da Juventude, Jornal de Notícias

A 3 de Fevereiro de 1927 houve no Porto uma revolta contra o regime chefiada pelo general Sousa Dias, com forte participação popular e libertária, mas foi derrotada militarmente em pouco tempo, com muitas dezenas de mortos e centenas de detenções e deportações. Em Maio A Batalha foi fechada pelas autoridades. 

Naquela altura da história da resistência antifascista portuguesa a CGT assumiu uma posição que queria conciliar exigências práticas e razões ideológicas. Por isso, a confederação foi activa participando nas tentativas insurreccionais, mas não se uniu nunca às batalhas em favor da restauração da ordem constitucional da I República; e considerou a sua associação às revoltas de "natureza técnica", sem implicações na direcção dum movimento que unisse todos os grupos e partidos antifascista.

Na realidade cada um pensava nos seus interesses: os bolchevistas do PCP actuaram muito, muito pior fazendo nascer as suas fortunas das desgraças alheias que mesmo eles causaram, mantendo naquela fase delicada da luta uma atitude ambígua, para não dizer outra coisa. Assim, no 1° de Maio de 1928, os comunistas dirigidos por Bento Gonçalves, fizeram todo o possível para a falência da festa dos trabalhadores, organizada pelos anarco-sindicalistas. 

Em 1929 a UAP foi declarada fora-da-lei e os anarquistas - mudadas as condições exteriores - experimentaram outra estrutura, territorial e não mais baseada nos grupos de afinidade: na região do Porto manteve-se a preferência para os grupos de afinidade.

Em Abril de 1928 António de Oliveira Salazar - um clerical reaccionário, professor de Economia Política e Ciência das Finanças na Universidade de Coimbra - recebera o cargo de Ministro das Finanças no governo da ditadura militar, conseguindo logo o controlo total do aparelho governativo e em 1932 foi nomeado Presidente do Conselho.

Em condições progressivamente mais difíceis, até à clandestinidade, devido ao reforço do regime militar e à criação sucessiva do Estado Novo fascista que Salazar quis em 1933, prosseguiu - nos limites do possível- a luta dos militantes anarquistas e libertários. Ainda em 1929, foram editados dois novos periódicos de propaganda.

Também o PCP (estruturado diferentemente) organizava-se melhor, em especial no nível sindical. Os comunistas criaram uma Comissão Intersindical, mentor Daniel Neto Botelho, que teve uma vida muito breve. A CGT, para contrariar a actividade bolchevista criou uma Comissão Interfederal, e esforçou-se para poder publicar A Batalha, pelo menos semanalmente, mas - por causa das incessantes intervenções censórias - o periódico passou a ser publicado clandestinamente, quando possível.

A resistência armada contra o regime continuou, mas a revoltas de populares e militares falharam todas (14)

Os anarquistas não desistiam. Na fortaleza de São João Baptista os prisioneiros libertários criaram um jornal escrito à mão, e no Porto (cidade onde a intensidade da repressão foi um pouco mais leve do que em Lisboa) intentou-se reconstituir uma imprensa libertária (O Germinal, A Vida, A Aurora). E no verão de 1932 foi criado o Comité Regional Organizador das Juventudes Libertárias. A organização das Juventudes Libertárias actuou até a década de 50 e desenvolveu - apesar das dificuldades que é fácil imaginar - uma acção propagandista muito intensa, e mais o menos regular. Continuou a publicar-se A Batalha e a difundir panfletos com a sigla da CGT para manter viva a imagem da confederação.

No final de 1931 foi organizada a Aliança Libertária de Lisboa - por impulso de Emídio Santana, Manuel Joaquim e Germinal de Sousa, militantes da Graça, de Campo de Ourique, Alcântara, Belém, Santo Amaro - que no mesmo ano enviou um delegado ao Congresso da FAI em Madrid. No Barreiro formou-se o grupo Terra e Liberdade (que publicou o jornal homónimo); no Porto a Federação Anarquista do Norte; no sul a Aliança Alentejana e em Setúbal a Aliança Libertária Portuguesa.

Todas estas organizações foram alvos duma repressão intensa e centenas e centenas de militantes foram deportados.

Sempre em 1931 foi publicada a segunda edição do livro O Sindicalismo em Portugal, de Manuel Joaquim de Sousa; e António Botelho escreveu A Conquista do Poder, cuja edição foi cuidada por Álvaro Costa e Emídio Santana.

Em 1932 uma greve geral coordenada pela CGT contra a baixa dos salários - decidida por Salazar no quadro da sua política de saneamento das finanças e da economia - faliu pela sabotagem do PCP, que não tinha interesse nenhum num sucesso dos anarco-sindicalistas.

O ano 1933 foi fundamental na história do regime de Salazar, porque viu a criação do Estado Novo e as reformas legislativas inerentes: nova Constituição; reforma das Forças Armadas e da justiça; partido único (a União Nacional); nova lei de imprensa; Estatuto do Trabalho Nacional (imitação da Carta del Lavoro de Mussolini), com o objectivo de dissolver os sindicatos livres, transferir as suas propriedades ao Estado e depois aos "sindicatos nacionais", estruturados conforme um esquema corporativo; criação do Instituto Nacional do Trabalho; organização corporativa da sociedade e negação conceptual do conflito de classes; obrigação para os sindicatos de se enquadrar na nova ordem corporativa, evitando assim a dissolução; proibição da greve; interdição de aderir às federações sindicais internacionais.

Este corpus normativo fez com que a CGT - independentemente da sua situação de ilegalidade perdesse as possibilidades reais de obrar como confederação sindical (embora clandestina).

Adequou-se primeiro o sindicato dos vidreiros da Marinha Grande, controlado pelo PCP por meio de José Sousa - Armando Correia Magalhães. A CGT esforçou-se por contrariar a legislação salazarista (o Estatuto do Trabalho Nacional entrou em vigor a 1° de Janeiro de 1934) e organizou um Comité de Acção (15) que preparasse uma greve insurreccional. Esta foi programada para o 15 de Janeiro de 1934, e também os sindicatos controlados pelo PCP aceitaram a data. 

Desde o início as coisas não marcharam na direcção justa: antes foi preso José Francisco, e a 12 de Janeiro foi a vez de Mário Castelhano, que possuía o esquema operativo da revolta - denunciado à polícia (e o denunciante sabia bem o conteúdo dos documentos detidos por Castelhano!). Isto acabou por dar um golpe decisivo à CGT: beneficiária única foi a comunista Comissão Intersindical, que naquela altura podia contar só com 6 sindicatos, e somente em Lisboa.

Preso Castelhano, a CGT pediu um afastamento da greve insurreccional por poder aclarar a situação, mas … a Comissão Intersindical opôs-se em nome das exigências superiores das massas! E quando tudo estava disposto para começar a insurreição, a "fatalidade" quis que a Ernesto Ribeiro - militante do PCP e da Comissão Intersindical - explodisse uma bomba na rua, pouco antes do início da revolta: o que determinou a intervenção de polícia e exército, os pontos estratégicos de Lisboa foram controlados e centenas de militantes revolucionários presos.

Contudo a revolta começou igualmente em Leiria, Marinha Grande, Coimbra, Porto, Alentejo, Algarve, mas acabou por ser reprimida pelas tropas fiéis ao governo. Particularmente furiosos foram os combates na Marinha Grande, onde os populares atacaram as instalações da GNR, apoderaram-se de todas as armas disponíveis e resistiram dois dias aos assaltos da tropa.

O facto é (como comentou com claridade extrema Adriano Botelho nas suas memórias) que o PCP não podia de maneira nenhuma consentir o sucesso duma insurreição organizada pela CGT, senão pagando o preço da falência do seu programa de hegemonia do movimento dos trabalhadores. Manifestando o habitual cinismo dos bolchevistas, Bento Gonçalves atribuiu à CGT a culpa da falência da revolta e deu à insurreição o nome de "anarqueirada". 

Depois deste trágico episódio, a CGT - alvo duma vaga repressiva que produziu outras centenas de prisões e deportações - não constituiu mais um perigo real para o PCP, embora este tivesse que se fatigar ainda muito até poder conseguir uma consistência maior (16) e ocupar dentro da classe operária portuguesa o espaço antes ocupado por anarquistas e anarco-sindicalistas.

As terríveis prisões de Angra do Heroísmo, na ilha de Terceira e do Tarrafal em Cabo Verde, encheram-se de militantes libertários. Assim, o regime fascista expulsou da sociedade portuguesa todos os oposicionistas mais perigosos (porque realmente revolucionários), e ao mesmo tempo, varreu o que constituía o verdadeiro impedimento para que o PCP conseguisse o controlo do proletariado português. Não houve a matança em massa, à maneira de um Franco em Espanha: mas o resultado foi politicamente o mesmo.

Como notou Edgar Rodrigues, os vencedores foram duas forças aparentemente antagónicas: os fascistas e os bolchevistas. O PCP, apesar do seu desejo de actuar legalmente, foi declarado fora-da-lei e também os seus militantes forçados à clandestinidade. Naquela altura o Partido Comunista robusteceu muito a estrutura organizativa no estrangeiro (pela ajuda da URSS) e constituiu em Portugal núcleos clandestinos de fábrica.

Se bem que o regime tivesse desmantelado e destruído o movimento anarquista a voz dos libertários não se apagou totalmente. A resistência prosseguiu na clandestinidade: não foi fácil sustentar a esperança, mas a perseverança foi digna de admiração (17). Clandestinamente continuaram a ser publicados os periódicos A Batalha e O Libertário. A Batalha sobreviveu até ao 1950, e reapareceu em 1974.

A polícia descobria um grupo, e outro logo se constituía. Alguns militantes chegaram a instalar uma rádio libertária - a famosa Rádio Fantasma - que, como escreveu Edgar Rodrigues, roubava o sono aos polícias com as suas emissões que desmentiam continuamente as notícias difundidas pela rádio do regime. 

Os anarquistas exilados eram muito numerosos na França, Espanha, Suiça, Bélgica, Argentina, Brasil, América do Norte. Em Paris, os exilados criaram um primeiro embrião federativo e em 1932 em Espanha, onde se refugiaram muitos anarquistas depois da constituição da II República espanhola, foi efectivamente criada a Federação Anarquista dos Portugueses Exilados (FAPE), e nasceram núcleos dela em cidades espanholas (Madrid, Barcelona, Valência), Paris e América Latina.

 

(14) A 7 de Abril de 1927 no Porto; a 20 de Julho de 1928 em Lisboa; em Abril de 1931 na ilha de Madeira; a 26 de Julho de 1931 em Lisboa.
(15) Muito activos foram nisto Mário Castelhano, José Francisco e Manuel Henrique Rodrigues. O Comité foi composto por Acácio Tomás de Aquino, Custódio da Costa e Serafim Rodrigues.
(16) O relatório enviado pelo PCP ao VII Congresso da Internacional Comunista em 1935 falava de apenas 400 membros em Portugal.
(17) E. RODRIGUES, A resistência Anarco-Sindicalista em Portugal, Lisboa 1981; A oposição Libertária à Ditadura, Lisboa 1982; O Porto Rebelde, Porto 2001.


GUERRA DE ESPANHA E PÓS-2ª GUERRA: A PARALISIA

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