O ANARQUISMO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL

LUTAS SOCIAIS

Após o breve parêntese ditatorial de Sidónio Pais, as classes políticas republicanas tiveram que encarar uma situação económica muito difícil. O governo orientou-se em favor duma política inflacionista baseada na emissão de moeda, com pouca intervenções na economia do país. Mas foi um desejo piedoso pensar poder ficar de fora dos conflitos sociais originados pelas difíceis condições de vida da maioria do povo português. De facto, o governo logo teve que tabelar o preço do pão, instrumento que a acção e as pressões da UON fizeram permanecer por um tempo adequado, porque se manifestava - embora devagar - uma tendência ao aumento dos salários. 

Esta capacidade operativa da UON (11) não deve maravilhar, porque o proletariado industrial (que passou de 142.000 a 217.000 em 1924), concentrado em Lisboa (38% da população) e Porto (30%), naquela altura tinha interesses convergentes com os doutras classes urbanas - como os trabalhadores dos transportes e do comércio - o que fazia dela um grupo de pressão notavelmente forte. E 50% do proletariado operário aderia aos sindicatos.

Tal era a força do movimento operário que nos anos 1917-1924, quando os conflitos sociais causaram um incremento considerável das greves (cerca de 400), a vida de Lisboa e Porto foi paralisada muitas vezes pela acção dos grevistas. Naturalmente não faltou a violenta repressão policial, seguida por atentados e sabotagens, e a luta do proletariado contra a violência de polícias e patrões levou à criação do Comité de Defesa Social e da Legião Vermelha (responsável pelo menos de 200 atentados) (12).

Contudo, apesar da violência das lutas sociais fazer pensar (dentro e fora de Portugal) que fosse possível uma revolução social radical, já em 1922 era um dado adquirido o governo e os patrões poderem retomar o controlo da situação. Os governantes - praticamente entre dois fogos - no início tentaram tirar força ao proletariado fazendo recurso à formas iniciais de política social (13), mas em vão, como se viu a 1° de Março de 1919, quando a UON trouxe à rua pelo menos 30.000 trabalhadores, reivindicando a socialização das terras e industrias. É um facto sintomático que A Batalha se tenha tornado o terceiro jornal nacional.

As pressões do patronado em seguida fizeram mudar de ideia o governo, que abandonou a política social iniciada há pouco. Mas o proletariado organizado demonstrou que tinha ainda uma grande capacidade de luta, de resistência e de mobilização (houve conflitos sociais que demoraram também dois meses); e foi esta força a base da criação da CGT.

A reorganização do patronado deu ao Estado a oportunidade de incrementar a repressão violenta: ocupações armadas de bairros populares, encerramentos de jornais e periódicos do movimento dos trabalhadores, combates armados entre polícias e operários, proclamações de estado de sítio, detenções e deportações. Em 1920 atentados bombistas e sabotagens tiveram uma frequência nunca vista antes; mas por fim, perante a consciência da necessidade de estarem unidos contra o proletariado, agora conseguida pelos capitalistas, bem pouco espaço ficava para o desenvolvimento da táctica habitual dos anarco-sindicalistas: forçar à rendição, de cada vez, os sectores mais fracos do patronado e obter depois uma "reacção em cadeia".

O ano 1920 foi o mais violento na luta sindical e os governos tiveram realmente medo da greve insurreccional defendida por muitos militantes da CGT. O momento mais preocupante para a burguesia foi o mês de Janeiro, quando uma greve geral da CGT degenerou em tiroteios entre polícias e operários, com mortos e feridos, e um destacamento da GNR passou para o lado dos grevistas. Porém, o resultado desta luta demonstrou que as coisas tornaram-se piores para os anarco-sindicalistas. O governo do coronel António Maria Baptista agravou a repressão e - o verdadeiro sinal de refluxo - a greve geral foi uma falência.

Abriu-se um período de frustração, agravada pelos contrastes entre libertários e bolchevistas e pela acção do patronado que actuou muito na direcção de separar os operários especializados e os empregados da função pública (os quais tinham uma capacidade de pressão maior) do resto do mundo do trabalho. As lutas sociais, contudo, prosseguiram enquanto as "revoltas da fome" se estendiam do norte ao sul do país.

O governo de Liberato Pinto derrotou os ferroviários depois duma greve de 70 dias e o sindicato teve que negociar com a empresa a reintegração dos trabalhadores e em troca da libertação dos companheiros presos teve que renunciar ao horário laboral de 8 horas. A derrota foi pesada e a CGT nunca voltou a obter uma vitória importante. Além disso, a constituição do PCP quebrou a unidade do proletariado português: trata-se, todavia, duma consequência daqueles acontecimentos, mais do que duma causa.

É inegável que a falência substancial da luta da CGT - desenvolvida só ao nível económico e não ao nível político - não podia senão empurrar vários militantes à procura de alternativas revolucionárias que lhes apareciam como de amplidão maior (infelizmente tratou-se do bolchevismo). Outros descontentes refluíram no terrorismo individual.

Os bolchevistas não perderam tempo, e desenvolveram uma acção especificamente dirigida à desagregação da CGT, e não se coibiram de dar lugar a campanhas de descrédito contra estimados expoentes anarquistas - como Manuel Joaquim de Sousa - contrários às manobras do PCP para com a CGT e dentro dela.

Alguns militantes aderiram de maneira patente ao PCP (talvez para serem depois expulsos quando não serviram mais, ou serem molestados pelos seus resíduos libertários). Outros, ao contrário, actuaram às escondidas (como Fernando de Almeida Marques, ocultamente em ligações com Bento Gonçalves, na altura secretário do PCP).

O progressivo enfraquecimento do proletariado - estreito entre as derrotas das lutas sindicais e as divisões interiores - e o paralelo fortalecimento do patronato e das suas ligações com as Forças Armadas no final do período, criaram um contexto favorável a um golpe de força direitista definitivo que alcançasse dois objectivos: o desmantelamento do movimento dos trabalhadores e uma nova estruturação do poder político fora da fraqueza parlamentária.

Em 1924 pareceu que a política do governo se poderia mudar num sentido mais favorável aos interesses do povo, se bem que compatível com o sistema dominante. De facto, a positiva vaga emocional produzida nos sectores republicano de centro/esquerda pela vitoria eleitoral do cartel das esquerdas na França - que em Maio de 1924 conduziu ao governo radical/socialista de Eduard Herriot - fez com que em Novembro daquele ano se formasse em Portugal um governo burguês de esquerda, presidido por um político honesto, José Domingues dos Santos. 

Este, no início de 1925 atacou directamente a especulação dos bancos e contrariou a confederação patronal, União dos Interesses Económicos. O seu governo (não apoiado formalmente pela CGT, mas não combatido por esta) chegou a atacar os privilégios das assim ditas "forças vivas da Nação", e por isso em Fevereiro de 1925 Domingues dos Santos dissolveu a Associação Comercial de Lisboa, pela sua actividade anti-governativa.

A 6 de Fevereiro o governo recebeu nas ruas o apoio duma grande manifestação popular, promovida por associações republicanas apoiadas pela CGT, o Partido Socialista e o PCP. Mais em vão. No mesmo mês o sector "moderado" da coligação governativa fez cair o governo, e nada pôde fazer para soçobrar a situação a imponente manifestação popular que teve lugar em Lisboa a 13 de Fevereiro, com participação de todas as forças de esquerda (parlamentária e não).

 

(11) Sobre o assunto, E. RODRIGUES, Os Anarquistas e os Sindicatos, Lisboa 1981.
(12) A.J. TELO, Decadência e Queda da Primeira República, Vol. VI, Lisboa 1980.
(13) Foi constituído o Ministério do Trabalho e foram introduzidos o dia laboral de 8 horas e os seguros sociais.


DITADURA E RESISTÊNCIA

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